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O SACERDÓCIO UNIVERSAL DOS CRENTES

Uma perspectiva pentecostal


Sem deixar de reconhecer o valor do trabalho do grande reformador alemão, diferentemente do que se pensa, a doutrina do sacerdócio universal dos crentes, tal como se entende bíblica e atualmente, não é uma invenção do século XVI e não foi Lutero quem a criou. 

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Pela exiguidade de espaço não é possível abordar todo o processo de elitização a que o cristianismo foi historicamente sendo submetido culminando na estrangulação da participação leiga que, como se pode ver em Atos dos Apóstolos, era obra do próprio Deus: “E também Saulo consentiu na morte dele. E fez-se, naquele dia, uma grande perseguição contra a igreja que estava em Jerusalém; e todos foram dispersos pelas terras da Judeia e da Samaria, exceto os apóstolos. E uns varões piedosos foram enterrar Estêvão e fizeram sobre ele grande pranto. E Saulo assolava a igreja, entrando pelas casas; e, arrastando homens e mulheres, os encerravana prisão. Mas os que andavam dispersos iam por toda parte anunciando a palavra” (8.1-4). 

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Assim, não se pode ignorar sem ser injusto, o papel do metodismo no século XVIII e do pentecostalismo desde o início do século passado no exercício do sacerdócio universal dos crentes como se entende atualmente. 

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Cumprindo o ideal bíblico de ser um reino de sacerdotes, e tal, diga-se de passagem, mais importante que qualquer outro aspecto, posto que, conforme o já citado teólogo anglicano, Alister McGrath, “o que legitima a igreja e seus oficiais não é a continuidade histórica com a igreja apostólica, mas a continuidade teológica”, ou seja, “É mais importante pregar o mesmo evangelho que os apóstolos do que ser membro de uma instituição que é derivada historicamente deles” (MCGRATH, A. ‭O Pensamento da Reforma.‬ ‭Ideias que iluminaram o mundo e continuam a moldar a‬ sociedade.‭ 1.ed. São Paulo: Cultura Cristã 2014, p.173).‬

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E é exatamente isto que fez John Wesley, a exemplo da igreja do primeiro século, ao reconhecer o trabalho leigo ao lado do dos oficiais, impressionado com o que faziam os pietistas e os Irmãos Morávios.

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Todavia, conforme  observa Kenneth Collins, especialista nos estudos do grande avivalista  britânico, “Wesley vai além de seus colegas morávios e pietistas em seu extenso uso de pregadores leigos, com frequência, chamados “ajudadores”, e também uma quantidade de “assistentes” que ajudavam na supervisão desses pregadores” (COLLINS, K. J. ‭Teologia de John Wesley.‬ ‭O amor santo e a forma da graça.‬ 1.ed. Rio de Janeiro:

CPAD, 2010, p.332).

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Não obstante, Wesley fazia uma “distinção entre mensageiros comuns e extraordinários” (Ibid., p.328), visando mostrar a diferença entre o povo todo e um Filipe, por exemplo (At 81-8,26-40).

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De correlato ao trabalho de Lutero, e dos reformadores, Wesley também não visava, com o metodismo, a criação de uma nova igreja em relação à Anglicana, mas sim ser “uma ordem reformadora dentro da comunhão de fé mais abrangente” (Ibid., p.332).

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Isso porque, conforme Collins, “na avaliação de Wesley, a igreja mais abrangente tem constante necessidade de reforma e, por conseguinte, sempre requer uma ordem transformadora, profética em seu âmbito, para que os elementos formais ‘objetivos’ da tradição ― necessários à transmissão da fé  para as gerações subsequentes ― não sejam  mais importantes que a devida consideração que deve ser dada aos elementos ‘entusiásticos’, ‘sobrenaturais’ e ‘subjetivos’ exigidos na presença curadora do Espírito Santo em todo o poder redentor característico do Espírito”. O mesmo autor completa dizendo que tal postura trata-se de “uma compreensão dinâmica e carismática da igreja, e em que a reforma é contínua” (Ibid., p.333).

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Tal é necessário se se quiser pensar a Reforma como um processo e não meramente como um evento a ser celebrado. 

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O princípio reformista não pode ter ficado lá atrás há 502 anos. Conforme a frase latina e emblemática  da Reforma, Eclessia reformata et semper reformanda secundum verbum Dei, ou seja, “A igreja reformada e sempre reformando de acordo com a Palavra de Deus”, precisa ser uma realidade por conta da dinâmica e da atuação humana na igreja. 

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Daí a importância da observação de Collins ao dizer que “da mesma forma que o metodismo precisava da Igreja Anglicana em seu contexto, também a Igreja Anglicana precisa da sociedade metodista para seu testemunho” (Ibidem).

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Tal semelhantemente se deu com as Assembleias de Deus no Brasil. 

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Daniel Berg e Gunnar Vingren não vieram ao país para fundar a Missão Evangélica da Fé Apostólica, antes queriam apenas pregar o Evangelho completo (At 2.14-39). 

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Neste aspecto, novamente, há vários paralelos entre o metodismo e o pentecostalismo, pois a “ascensão do pentecostalismo”, diz Collins, “em termos de herança wesleyana e do reavivamento que o precedeu, é marcada por muitos impulsos reformistas”.   

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O pentecostalismo, completa o mesmo autor, “de forma semelhante a Wesley, desenvolveu uma historiografia, uma forma de interpretar a história da igreja, que enfatiza o vital cristianismo escritural”, ou seja, os “pentecostais, não contentes apenas com a forma da religião (que era religião mais que suficiente para os ricos e para a mais determinada classe média alta), desejavam o poder da religião”. 

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Citando Steven Land, Collins diz que toda vez que a igreja cristã se torna “poderosa”, do ponto de vista humano, ela entra em declínio espiritual e é justamente este “enfraquecimento de um cristianismo popular e cada vez mais mundano [que] foi questionado por  muitos profetas, como as crises de Lutero (justificação), de Wesley (santificação) e do pentecostalismo (cheios  do Espírito), e o que levou às necessárias e inevitáveis reformas’” (Ibid., p.200).

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O autor ressalta a observação de Harvey Cox de que a expansão do pentecostalismo por todo o Hemisfério Sul é algo “tão extraordinário que, na verdade, pode até ser considerado como: uma nova reforma que está em andamento” (Ibid., p.201).

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Isso porque, “À luz de recente trabalho minucioso de peritos em sondar a opinião pública e de demógrafos, fica claro que, no século XXI, a fé cristã se manifesta de novas formas que premiam a atividade capacitadora do Espírito Santo tanto na vida pessoal como corporativa” (Ibid., p.202).

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Este aspecto experiencial é, inclusive, algo que encontra respaldo na chamada pós-modernidade, conforme venho insistindo há tempos. Tal porém, não significa dizer que o Pentecostalismo seja pós-moderno (CARVALHO, ‭ ‬C. M.  ‭Pentecostalismo e Pós-Modernidade.‭ ‭ Quando a experiência sobrepõe-se à‬‬‬ Teologia.‭ 1.ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2017, 432p‬.).

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Finalizando esta reflexão, a despeito de ser pentecostal, é possível dizer, sem paixão alguma, que “o metodismo do século XVIII e o pentecostalismo moderno, são vitais e também novos movimentos do Espírito, que com frequência, são considerados desestabilizadores’”. Conquanto isto seja exatamente o que faz, ou provoca o ímpeto reformista ou a ordem reformadora em qualquer sistema, o pentecostalismo acaba sendo censurado por não  se enquadrar nos cânones  do tradicionalismo. Não obstante, tal “designação embora dada no sentido negativo, na verdade, é uma expressão positiva do caráter desses movimentos”, ou seja, “eles desafiam os poderes vigentes, abrem caminho, por assim dizer, a fim de pavimentar a estrada para a nova vida e a genuína liberdade, a vida de um coração libertado para a graça do Espírito e pelo amor profundo, curador e satisfatório” (COLLINS, K. J. ‭Op. Cit.‬, p.203).

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Não é isto que tem acontecido há mais de um século no Brasil? A palavra e o púlpito franqueados às pessoas das camadas mais simples e populares da sociedade? Tudo por causa da igualdade produzida pelo Espírito de Deus que age indistintamente? O crente que se converte   ao Evangelho de Jesus Cristo no pentecostalismo não precisa de autorização para exercer o seu “sacerdócio”, posto que o ímpeto do Espírito já o leva a agir assim.  

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Dessa forma, desde o início do pentecostalismo, a admiração é que “homens sem letras e indoutos” (At 4.13) sejam canais de Deus para a transmissão da mensagem que os doutores fazem questão de obliterar (Lc 11.52; At 4.15-20). 

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A grande ironia que se verifica neste pouco mais de meio milênio de Reforma Protestante, é que, mesmo sendo uma expressão que muitos teimam em não reconhecer como herdeira de tal acontecimento, o pentecostalismo tem demonstrado ser, ao lado do metodismo do século XVIII, uma das únicas expressões da religião cristã a levar a efeito o sacerdócio universal dos crentes e o livre-exame das Escrituras, pilares principais da Reforma Protestante.


César Moisés Carvalho


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